Verdades sobre a pós-verdade
“O uso da palavra aumentou muito em
junho, com todo o frenesi do Brexit e das eleições nos Estados Unidos.
Nos últimos tempos não houve sinais de que seu emprego venha a cair; não
ficaria surpreendido se pós-verdade se tornasse uma das palavras que
definem a nossa era”, observou Casper Grathwohl, presidente da Oxford Dictionaries.

Resumindo, a era da pós-verdade traz
consigo — fato agora reconhecido e confessado — o definhamento da
relevância da verdade e da objetividade na vida privada e pública. Não
surpreende tornar-se cada vez mais comum o pouco interesse pela verdade e
a importância crescente das emoções na vida privada e pública.
A promessa do iluminismo que embaiu
multidões foi a de que a razão soberana iluminaria o mundo. A seguir
disseminou-se no Ocidente o positivismo, espécie do gênero racionalista
que reivindicou a importância do fato verificável pelos instrumentos da
ciência experimental. Desvalorizou o restante do conhecimento humano.
Também seduziu multidões sem-número ao longo das décadas. O mundo da
pós-verdade vira as costas para o racionalismo e o positivismo.
Anacrônicos, Descartes, Kant, Voltaire, Diderot, Comte. Durkheim e
tantos outros deslizam rumo à irrelevância. A nova situação dá origem ao
que nos Estados Unidos se chama de post-truth politics ou post-fact politics (política pós-verdade ou política pós-fato).
O fenômeno foi agravado pelas redes
sociais. Com menos instrumentos de controle, ali existe espaço amplo
para todo tipo de discurso e informações, mesmo os mais disparatados.
Podem circular sem contestação eficaz enxurradas de inverdades,
exageros, invenções. Barack Obama aludiu ao fenômeno ao tentar
justificar a derrota de sua candidata. Para ele, Donald Trump sabe se
mover no novo meio, “ecossistema em que fatos e a verdade não importam; você atrai a atenção, desperta emoções; você pode surfar essas emoções”.
Na era da pós-verdade, cada grupo tem
seu conjunto de crenças, desinteressa-se do restante. Cresce a
fragmentação social, generalizam-se as pessoas fechadas em pequenos
círculos de interesses, ideológicos, sociais, econômicos. Em tal clima o
debate se torna virtualmente inútil. Colin Crouch, cientista político
inglês, cunhou o termo pós-democracia como realidade próxima e
ameaçadora. Indica a situação em que formalmente existe a democracia, há
eleições e mudanças de governo, mas não mais sua base, a contenda real
de ideias. De forma análoga, a pós-verdade, ambiente largamente apático à
verdade, nos arrastará à pós-democracia.

O processo tem raiz antiga nas paixões
desordenadas e na falta de ascese intelectual. Ausente a temperança,
abundam as paixões em tumulto, desorientam-se as inteligências
vagabundas. Ninguém nega que sempre foi possível utilizar a mentira para
influir os espíritos e governar as pessoas. Os exemplos aí estão aos
milhões, no Brasil e no mundo todo. Da História, pinço dois. Luís XIV
jamais afirmou: “L’État c’est moi” (O Estado sou eu). A frase
falsa tem sido manejada com relativo êxito contra ele e o Antigo Regime.
Maria Antonieta nunca observou: “S’ils n’ont pas de pain, qu’ils mangent de la brioche”
(Se eles não têm pão, comam brioche). Vibradas contra ambos e contra as
cortes em que viviam, elas e outras armas de difamação fizeram enorme
estrago. O alarmante é o agravamento da apatia frente à verdade,
reconhecido e confessado por corifeus da modernidade. Fatos e afirmações
absurdas se tornaram mais fáceis de divulgar e têm potencialmente
efeitos mais devastadores.
* * *
Para finalizar, até mesmo a pós-verdade pode ter esse uso. Muita gente tem garantido que o triunfo do NÃO no plebiscito colombiano, a vitória do Brexit
e o êxito de Trump só foram possíveis porque já vivemos num
generalizado clima de pós-verdade. É a análise simplista e deformadora.
Mas o espaço acabou; o tema fica para eventual artigo futuro.
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