UMA QUESTÃO DE CARÁTER
Tendências/Debates - Folha de São Paulo
Por Carlos Fernando dos Santos Lima
25/06/2017
Pode-se chamar de mau-caráter uma pessoa que celebra um acordo e, após lhe ter sido entregue o que foi prometido, diga que o acordo era ilegal e que não só ficará com o que foi entregue, como também usará tudo contra a própria pessoa que colaborou, negando-se a cumprir a contraprestação combinada?
Apesar de não ser possível atribuir caráter a uma pessoa jurídica, é esse agir imoral que alguns sugerem que deva ser a conduta do Estado brasileiro em relação às pessoas que celebram acordos de colaboração.
Ou seja, pretendem que esses acordos sejam celebrados e tenhamos benefícios suspensos para posterior verificação de sua legalidade ao final do processo. Nada mais errado.
Em termos jurídicos, a questão se traduz nas precisas declarações de voto dos ministros do STF Roberto Barroso, Luiz Fux e Celso de Mello na sessão que confirmou a validade da delação da JBS. Ou seja, o momento de se analisar a legalidade do acordo é o da sua homologação, e, uma vez homologado, descabe a reanálise de sua legalidade, pois isso ofenderia os princípios da boa-fé, da confiança e da segurança jurídica.
A análise do juiz que aplica por ocasião da sentença deve se restringir apenas sobre eventual descumprimento das obrigações pelo colaborador. E o magistrado deve ouvir o Ministério Público sobre isso, pois o acordo pode envolver, como no caso da Odebrecht, dezenas de processos e investigações nos mais variados locais. Por isso, o juiz necessita ter em perspectiva a totalidade dos fatos.
Se concluir não ter havido descumprimento do acordo pelo colaborador, é impositivo que se aplique a pena combinada, ou uma ainda menor, caso o resultado alcançado tenha sido excepcional. Mas nunca uma sanção maior, pois implicaria em uma violação aos
princípios mencionados. É preciso lembrar que o colaborador abre mão de importantes
direitos ao celebrar o acordo, como o de não produzir prova contra si mesmo ou de
exercer em sua plenitude o direito de recorrer da sua sentença condenatória.
Além disso, ele trouxe à tona fatos criminosos que eram desconhecidos das autoridades,
o principal objetivo do instituto. Tudo isso decorre também do modelo acusatório
vigente em nosso sistema processual penal, pois este implica a titularidade exclusiva da
ação penal pública pelo Ministério Público.
Isto é, somente o Ministério Público pode acusar em casos de crimes graves e, em
decorrência disso, também somente ele pode celebrar acordos de colaboração premiada.
Assim, quando o faz, age ele como órgão constitucional que representa o próprio Estado
brasileiro. Ao MP cabe, portanto, o julgamento de conveniência e oportunidade do
acordo, e essa motivação não pode ser substituída pelo Judiciário.
Essa estrutura
preserva adequadamente o sistema de freios e contrapesos previstos na Constituição
Federal, além de criar a segurança necessária para que pessoas envolvidas em
organizações criminosas possam romper com esses esquemas.
O desenho do instituto, tal qual criado em 2003 na força-tarefa Banestado, tem
sobrevivido incólume aos diversos testes a que tem sido submetido, revelando-se um
poderoso instrumento para o combate a organizações criminosas das mais diversas
espécies. Agora é importante que prevaleça essa interpretação do instituto da
colaboração premiada pelo Supremo Tribunal Federal. A jurisprudência reforçará seu uso
seguro em todo o Judiciário e Ministério Público. Não podemos deixar agora que ele
morra pelas mãos de Gilmar Mendes.
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