sábado, 23 de maio de 2015

Nova guerra fria

Dois anos atrás, o parlamento britânico negou autorização ao primeiro-ministro para intervir militarmente na Síria. Pouco depois, Obama e Putin negociaram um acordo que levou Assad a assinar a Convenção para a Proibição de Armas Químicas, livrando suas forças de bombardeios norte americanos em retaliação ao emprego de Sarin por tropas sírias, o que causou a morte de várias centenas de civis e crianças.
Na época, muitos, inclusive eu mesmo, identificaram falta de disposição dos EUA em punir os responsáveis pela atrocidade.
Os parlamentares britânicos e o presidente dos EUA perceberam os limites de seu poder e evitaram que seus países mergulhassem em um novo conflito, dessa vez num caldeirão de pólvora chamado Síria, onde a luta envolve muito mais do que choque de religiões ou de interesses geopolíticos.
Putin enxergou a fraqueza da OTAN e abocanhou a Crimeia poucos meses depois. 
O conflito na Ucrânia continua sem solução. Na Síria também e o Estado Islâmico permanece ativo e avançando. Tudo isso está interligado.
Estamos no meio de um impasse, onde os atores do jogo internacional não têm força ou interesse suficiente para derrubar seus adversários.
É uma outra modalidade de guerra fria.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

A visita de Li Keqiang ao Brasil - SERGIO AMARAL


A visita de Li Keqiang ao Brasil - SERGIO AMARAL
O ESTADÃO - 15/05

Em julho de 2014, o presidente da China, Xi Jinping, visitou o Brasil, acompanhado por uma delegação de vários ministros e mais de 200 empresários. Menos de um ano depois, será a vez do seu primeiro-ministro, Li Keqiang, desembarcar em Brasília, em 18 de maio próximo, à frente de uma missão empresarial integrada por altos dirigentes de algumas das mais destacadas empresas chinesas. Essas duas visitas, por si só, atestam a relevância que a China atribui ao Brasil.

Há sólidas razões para tanto. Primeiro, a economia.

Em pouco mais de uma década, o comércio entre os dois países cresceu quase 20 vezes. Os investimentos diversificaram-se e alcançaram cerca de US$ 28 bilhões.

Agora, a crise econômica e a Operação Lava Jato criaram uma oportunidade para empresas chinesas. Algumas das grandes construtoras brasileiras limitarão suas operações num mercado, o das grandes obras públicas, que até há pouco dominavam. A retração dos financiamentos, por sua vez, poderá induzir a flexibilização das regras de conteúdo nacional para a aquisição de equipamentos. Amplia-se, assim, o espaço para a participação de investidores estrangeiros nas novas concessões para projetos de infraestrutura. Nesse contexto, o investidor chinês encontra-se em posição privilegiada, pois é competitivo na tecnologia, nos equipamentos e no financiamento.

Mas o vigor da relação Brasil-China não se restringe à economia. Está também na política, sobretudo no momento em que a China dá passos firmes para consolidar sua presença e sua influência em escala mundial. Primeiro, pela busca de maior participação nas instâncias de decisão da governança internacional, especialmente nos organismos financeiros. A revisão na ponderação de votos nas instituições de Bretton Woods, no entanto, depois de anos de negociação, não foi ainda ratificada pelo Congresso norte-americano, o que levou o governo de Beijing a estimular a criação de instituições espelho, como o Banco de Desenvolvimento dos Brics e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura. Sem falar na conclusão de dezenas de acordos para a troca de moedas, para facilitar o comércio em moedas locais e preparar o caminho para a internacionalização do yuan.

A ofensiva chinesa no campo dos investimentos externos, estimados em US$ 1,25 trilhão para a próxima década, em várias regiões do mundo, vai aos poucos configurando uma verdadeira geopolítica da infraestrutura. Não se trata apenas da rede tentacular de rodovias, ferrovias e portos, em si, mas da capacidade de atração de novos investimentos e da abertura de mercado para exportações chinesas. Em decorrência da influência política.

Na Ásia o mapa de investimentos impressiona. A Nova Rota da Seda cruzará a Ásia Central e prosseguirá em direção à Europa, criando um cinturão econômico em seu entorno. Ao sul, a Rota Marítima da Seda ligará o Oceano da China do Sul ao Oceano Índico. No sentido norte-sul, uma rodovia e um trem de alta velocidade conectarão a região de Yunnan com a Tailândia, enquanto o Corredor Econômico ligará por rodovia Bangladesh, China, Índia e Mianmar.

Com vista a conter a expansão econômica e a crescente influência política da China no espaço asiático, o governo de Barack Obama (EUA) anunciou em 2012 o chamado pivô para a Ásia, com o objetivo, entre outros, de reforçar as alianças militares e políticas com países na região. Pouco depois, lançou a Parceria Comercial Transpacífica (TTP, em inglês) – da qual a China foi excluída – para consolidar uma zona econômica sob influência americana. Mas esses passos não parecem suficientes, ao ver de analistas e congressistas norte-americanos. Em estudo recente, o Council on Foreign Relations, um dos mais conceituados think tanks norte-americanos, condenou a política de acomodação do governo Obama perante a China e preconizou uma nova estratégia política, militar e econômica para defender “os interesses vitais dos Estados Unidos nessa vasta região”.

De certa maneira e em menor grau, Xi Jinping parece replicar na América do Sul a política norte-americana na Ásia. A presença da China na região já é marcante no comércio e nos investimentos. Em breve passará a ser também na infraestrutura, em decorrência dos acordos que concluiu com a Argentina e do convênio a ser assinado com o Brasil, por ocasião da visita de Li Keqiang, para a construção da via Transoceânica que ligará o Atlântico ao Pacífico, cruzando o Centro-Oeste e o Peru. A provável participação de investimentos chineses na rede de ferrovias – interligadas à Transoceânica – para o escoamento dos grãos produzidos no Centro-Oeste porá as empresas chinesas numa posição privilegiada em todo o complexo soja, pois atuarão na originação do grão, no armazenamento, na logística de transporte, incluídos terminal e porto, exportação e comercialização no mercado chinês.

Brasília joga, assim, ao lado de Beijing em vários dos tabuleiros em que se vai desenhando a emergência da China, econômica primeiro, política em seguida. Defendemos, legitimamente, maior participação dos países emergentes na governança internacional. Somos parceiros na criação de instituições financeiras alternativas. Assinamos acordo de troca de moedas. Estamos associados em projetos estratégicos em nosso subcontinente.

O Brasil tem na China não só um parceiro estratégico, mas um parceiro que tem estratégia. Resta saber se nós também temos uma visão clara de nossos interesses e objetivos, especialmente no momento em que Estados Unidos e China iniciam um capítulo novo de competição mais acirrada por mercados e áreas de influência.

domingo, 10 de maio de 2015

Um juiz mais importante que Barbosa ou Moro

Um juiz mais importante que Barbosa ou Moro

Hélio Gurovitz - Epoca


O juiz em questão chama-se Ivan Ilitch Golovin, personagem do escritor russo Lev Tolstói


Preste atenção a este juiz. Não se trata de nenhum ministro do STF, do STJ, nem de nenhum tribunal superior. Não é desembargador nem uma das estrelas que ocuparam o noticiário em tempos recentes, como Joaquim Barbosa ou Sergio Moro. O juiz em questão chama-se Ivan Ilitch Golovin, personagem do escritor russo Lev Tolstói. Graças a obras-primas como Guerra e paz e Anna Karenina, Tolstói entra em qualquer lista dos maiores romancistas de todos os tempos. É nos contos e nas novelas curtas, porém, que ele demonstra toda a sua força. A morte de Ivan Ilitch é considerada a mais perfeita novela jamais escrita. Pelo tema, pela forma como a história é contada e pela capacidade de pegar qualquer um de nós de imprevisto – e de nos pôr contra a parede.

A narrativa começa com uma cerimônia fúnebre em torno do corpo do juiz Ivan Ilitch, titular do Tribunal de Justiça, numa província da Rússia czarista. Nem bem o cadáver está no caixão, seus colegas disputam a sucessão e discutem quem ocupará o lugar de quem com o posto vago. A mulher chama a um canto o amigo mais próximo do marido morto para perguntar-lhe como seria possível extrair mais dinheiro do governo. Seus antigos confrades escapam da cerimônia para uma partida de cartas, que não havia como cancelar. Tolstói conta, a partir daí, como Ivan Ilitch levara uma vida exemplar para os padrões da sociedade russa. Formara-se em Direito, casara-se, tivera filhos e conquistara gradualmente posições no Judiciário. Seu sucesso fora coroado com a nomeação para o cargo de juiz no interior. O trabalho preenchia sua vida. Julgava os casos mais difíceis sem misturar questões pessoais e profissionais. Respeitado na comunidade local, usufruía com prazer o poder de decidir o destino alheio. Até que sofre uma queda ao instalar uma cortina em sua casa nova e, a partir daí, sua saúde degringola. Ele entra numa lenta decadência física, assistido por médicos incapazes de curar uma doença misteriosa, que lhe afeta ora o rim, ora o apêndice. Especialistas são consultados, estrelas da medicina demonstram a impotência da ciência diante da palavra-chave de Tolstói: o “inexorável”. Ivan Ilitch é forçado a deixar o trabalho, abandonado ao leito pela família e pelos amigos. Encontra consolo apenas no ópio que lhe alivia as dores insuportáveis e no apoio que recebe de um criado. Acamado, moribundo, começa a refletir sobre como pode uma doença sem cura aparente atingir alguém tão correto. Lá pelas tantas, pergunta-se: “Quem sabe eu não vivi como devia? Mas como assim, não como devia, se eu fiz tudo como era devido?”. O arrependimento toma conta de seus últimos pensamentos até que, aos 45 anos, sobrevém o “inexorável” – ele morre.

Conde da nobreza russa, Tolstói era um conservador. Desconfiava das aparências sociais, das ilusões políticas e de todo pensamento que vislumbrasse algum tipo de ordem no caos da vida e da história. Não acreditava nas teorias tão em voga em seu tempo, como socialismo, positivismo, ou mesmo liberalismo. “Tolstói rejeitava a reforma política por acreditar que a regeneração definitiva poderia vir apenas de dentro, e que a vida interior só poderia ser vivida de verdade nas profundezas intocadas das massas populares”, escreveu o pensador Isaiah Berlin em seu monumental ensaio O ouriço e a raposa. Foi tal crença que levou Tolstói, já mestre reconhecido da literatura russa, a abandonar as letras para levar uma vida frugal com a mulher e os 13 filhos na propriedade rural de Iasnaia Poliana, a 200 quilômetros de Moscou. Idoso, barba de profeta, esnobado pelo comitê do Prêmio Nobel, absorto em suas ideias pacifistas e em sua versão particular do Cristianismo, resolveu abandonar a própria família. Legou os direitos de suas obras ao povo russo e passou a viver como pedinte de uma cidade a outra da Rússia.

A morte de Ivan Ilitch foi publicado em 1886, quando Tolstói já largara a literatura. Berlin argumenta que, mesmo desprezando os teóricos intelectuais, Tolstói era um deles – acreditava na existência de alguma ordem mais profunda, capaz de explicar a realidade. Apenas não acreditava na nossa capacidade de encontrá-la ou de entendê-la. Não era, para usar a metáfora de Berlin, um “ouriço”, alguém que vê tudo através do prisma de uma teoria única. Era uma “raposa”, cujo refinamento e compreensão das múltiplas facetas da alma humana o tornavam capaz de esmiuçar e desmontar qualquer teoria que desse alguma aparência de ordem à vida. Não escolheu um juiz como personagem à toa. Juízes são o maior símbolo da ordem social que tanto desprezava. Não houve PEC da Bengala para Tolstói. Ele se manteve ativo até morrer, em 1910, aos 82 anos. A morte de Ivan Ilitch mostra que o mais importante não é a idade com que juízes, escritores ou qualquer um de nós nos aposentamos – nem quando ou como morreremos. É o que fazemos antes disso.

Ajuste ou desmanche? - Eliana Catanhede


Ajuste ou desmanche? - ELIANE CANTANHÊDE
O ESTADÃO - 10/05

A aprovação da primeira fase do ajuste fiscal foi uma vitória do governo e dá um certo alívio para Dilma Rousseff, mas ainda falta passar pelo Senado e não se pode esquecer que esse ajuste é parte do desmanche de todo o primeiro mandato da presidente. Basta repassar as prioridades entre 2011 e 2014 para confirmar que não sobrou pedra sobre pedra.

Uma por uma, Dilma vem abandonando aquelas ideias que tirava da própria cabeça – não raro passando por cima da área técnica e da perplexidade do mercado – e anunciava com pompa e circunstância. Com o abandono e o desmanche, viram sucatas.

Nem o modelo de exploração do pré-sal resiste à realidade, apesar de Dilma ter feito carreira na área de energia e de ter ocupado, inclusive, o Ministério de Minas e Energia. Depois de tanta badalação, tanta aula com PowerPoint, tanta picardia contra o modelo tucano, o governo volta atrás, falando em deixar o sistema de partilha de lado para recuperar o de concessões, acabando com a obrigatoriedade de a combalida Petrobrás participar de todos os blocos.

Até o Pronatec, um dos carros-chefe dos debates, dos programas de TV e do dia a dia da campanha da reeleição, está devagar. Com a crise na economia, dissimulada no limite da irresponsabilidade, Dilma só conseguiu pagar os subsídios das entidades privadas até outubro, mês da eleição. Depois disso, atrasos, confusão, incerteza.

Outro que embalava o marketing dilmista era o Fies. Sem desprezar os objetivos corretos e as boas intenções, também encheu as burras de universidades de desempenho sofrível e brindou estudantes pobres com diplomas capazes de embelezar paredes, mas de serventia duvidosa para lhes garantir empregos em suas áreas. Em 2014, havia 4,4 milhões de bolsistas, com financiamento de R$ 13,4 bilhões para escolas privadas – boas ou arapucas. Sem dinheiro, muitos dos bolsistas e das escolas estão a ver navios.

E o financiamento da casa própria? É bem verdade que Dilma ainda viaja pelo País – quando não corre o risco de panelaços –, entregando milhares de unidades do Minha Casa Minha Vida, como fará na próxima terça-feira, no Rio. Mas, com o pior resultado da caderneta de poupança em 20 anos (20 anos!), lá se foi o crédito para moradia. A Caixa Econômica Federal limitou o financiamento de imóveis usados à metade do valor total e acaba de anunciar aumento dos juros da compra de casas.

Dilma estufou o peito num pronunciamento em cadeia de rádio e televisão porque tinha decidido na marra a redução da conta de luz para residências e empresas. Patrões, empregados e eleitores em geral bem sabem o que aconteceu depois da eleição. Ou melhor: o que vem acontecendo todo mês, quando a conta bate à porta e arromba o bolso.

Num outro pronunciamento oficial, a presidente se vangloriou da redução dos juros como nunca antes neste país e ainda estendeu um dedo ameaçador para os bancos privados, ordenando que eles fizessem o mesmo. E, afinal, onde foram parar os juros?

A venda de carros caiu 25,2%, no pior abril em oito anos. Mais de 250 lojas foram fechadas. Mais de 12 mil trabalhadores do setor foram para o olho da rua. E a indústria em geral? A produção industrial caiu 5,9% no primeiro trimestre de 2015. É mole?

O desastre afeta outro indicador importante, que ajudou muito o trabalho dos marqueteiros e foi importante para segurar o discurso e os votos da reeleição: o emprego. No entanto, segundo os dados oficiais, o desemprego já subiu para 7,9% no primeiro trimestre. Sabe-se lá onde isso vai parar.

Então, é ótimo que o ajuste fiscal comece a ser aprovado no Congresso e que novas perspectivas se abram para o País, mas não se pode esquecer que isso tudo é parte do desmanche que derrubou a popularidade de Dilma de quase 80% no início de 2013 para 13% em 2015. E agora, com o desmanche do primeiro mandato, a grande pergunta é: para construir o que no lugar?

Soltos - Marcos Rolim

domingo, maio 10, 2015

SOLTOS - MARCOS ROLIM

ZERO HORA 10/05

O argumento fundamental da decisão da segunda turma do STF pela soltura de nove executivos de empreiteiras investigadas na Operação Lava-Jato que estavam em prisão preventiva foi o princípio da presunção de inocência. Os réus, entretanto, foram encaminhados à prisão domiciliar, receberam ordem de não conversar entre si, foram submetidos ao uso de tornozeleiras eletrônicas e tiveram passaportes apreendidos. Presume-se, portanto, que há o risco de que prejudiquem a instrução criminal e de que possam fugir do país. Neste caso, estamos diante de duas das exceções à regra da liberdade processual. Ou seja, as circunstâncias que poderiam justificar as medidas restritivas contra os acusados são aquelas que autorizam a prisão cautelar. Então, por que soltá-los?
No Brasil, há especial sensibilidade aos direitos dos poderosos. Proporcional ao desprezo pelos direitos dos mais pobres, acrescente-se. A prisão preventiva dos empresários poderia ser interpretada como constrangimento para estimular delações? Talvez. O que admitiria a dúvida: há constrangimentos legítimos no Estado de Direito? Imagino que sim. Aliás, possivelmente, a ausência da disposição de constranger réus poderosos estimule, e muito, a corrupção no Brasil. Não por acaso, Paulo Maluf só foi condenado definitivamente por tribunais no exterior. Por aqui não há sentença com trânsito em julgado contra ele. Ao invés de constrangimentos, Maluf é bajulado a cada eleição. Não se trata de caso isolado. Isolado foi o julgamento do “mensalão”. A regra sempre foi, e segue sendo, dispensar às pessoas “diferenciadas” toda a compreensão. Uma inclinação quase natural entre aqueles que Raymundo Faoro descreveu como “patronato político”. No âmbito judicial, esta marca estimula a criatividade jurídica e, diante de prova robusta, desconstitui a ação penal ou simplesmente obstaculiza o julgamento. Alguém dirá que o fenômeno é decorrência dos labirintos de legislação permissiva. Não é. O fato é que a decisão judicial é sempre uma decisão fundada em uma sensibilidade moral, aquilo que Obama chamou de “empatia judicial” (judicial empathy), diferente da ideia do magistrado como um “aplicador da lei”, um “árbitro” (umpire), síntese positivista preferida pelos republicanos. É tema relevante, portanto, na seleção dos magistrados, a natureza de suas sensibilidades morais. Sem as virtudes requeridas pela função _ como a coragem necessária para contrariar interesses poderosos _ saber jurídico e garantias como a vitaliciedade são imprestáveis.
Não estou seguro quanto aos fundamentos empregados na decisão. Para os que atuam na defesa dos empreiteiros, ela garantiu direito elementar e motivos para comemoração. Para o Brasil, talvez tenha garantido a vitória do cinismo.

Benefícios da crise

A crise oferece oportunidades valiosas para corrigir erros históricos. Na semana passada, houve a votação das modificações no seguro desemprego, com a inclusão de critérios mais restritivos para sua concessão. Buscou-se, sobretudo, economizar recursos do Estado, mas houve repercussões positivas ao inibir-se abusos que poderiam inviabilizar a sustentabilidade daquele instrumento de seguridade social.
A falta de dinheiro força o Governo a empregar melhor os recursos públicos. A revelação dos escândalos de corrupção revelam a verdadeira identidade dos governantes e impele a população a posicionar-se politicamente, exigindo competência e honestidade daqueles que conduzem a administração pública.
Sim, a crise pode ser proveitosa, mas será desastrosa se pouco se fizer para impedir que os velhos erros se repitam.
O mais importante de tudo é castigar os corruptos e corruptores. A corrupção é uma ofensa intolerável à estrutura moral da sociedade, sua existência prejudica a eficiência no emprego dos recursos públicos e sua repetição provoca o surgimento de novas crises.

sábado, 2 de maio de 2015

A orfandade do Brasil profundo

"A orfandade do Brasil profundo", por Ruy Fabiano

Com Blog do Noblat - O Globo


O abismo entre os dois brasis é profundo e nenhum partido diagnosticou o problema. A queda do PT não o resolve, mas abre caminho para que uma interlocução se estabeleça

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Abismo entre os brasis  (Foto: Arquivo Google)
O Brasil, como salta aos olhos, é um país dividido. E a divisão não é apenas partidária, que é sua manifestação mais superficial e circunstancial, já que o brasileiro não crê em partidos.
A mais densa manifestação divisionista se constata entre sua elite universitária, politicamente correta – uns dez por cento da população - e o restante da sociedade, da classe média para baixo.
As pesquisas tangenciam o problema. O chamado Brasil profundo é religioso, conservador em seus costumes e valores e com uma visão realista das questões do cotidiano (maioridade penal, liberação das drogas e do aborto, desarmamento, entre outras) - o avesso do que propugna o Brasil politicamente correto.
Este – e aí incluem-se os formadores de opinião, estudantes e professores universitários, profissionais liberais e a militância de esquerda (centrais sindicais, ONGs, movimentos sociais) – fala outro idioma, embora se arvore a falar por todos.
Não se trata de uma tese, mas de fatos. O Brasil profundo, segundo pesquisas diversas, rejeita, por exemplo, o casamento gay. Por essa razão, nenhuma proposta nesse sentido foi submetida ao Congresso ou mesmo, via plebiscito, ao povo.
Buscam-se então vias alternativas. Assim, a autorização veio pelo Supremo Tribunal Federal, respondendo a consulta, contra a letra explícita da Constituição. A união civil estável sob a proteção do Estado, objeto da consulta, é tratada no parágrafo 3º, do artigo 226, nos seguintes termos: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
Apesar disso, o STF decidiu legislar: estendeu-a aos homossexuais. Na sequência, o Conselho Nacional de Justiça, sem qualquer base legal, autorizou os cartórios a realizar casamentos – e não apenas união civil estável sob a proteção do estado -, indo além da transgressão anterior.
Não se trata aqui de discutir o mérito da iniciativa, mas como foi obtida: à revelia da maioria, sem consultá-la – e mesmo já sabendo o que esta expressara, por meio de diversas pesquisas.
Idem o desarmamento. Em plebiscito de outubro de 2005, dois terços da população se manifestaram contrários à proibição da venda de armas de fogo – mas e daí? O Brasil politicamente correto, que se diz democrata, afronta a maioria e busca expedientes por meio de portarias administrativas, que contrariam a vontade explícita da maioria. O Congresso é também ignorado.
O mesmo Brasil real é contra a legalização do aborto, considerando que as exceções já acolhidas em lei – risco de vida da mãe, estupro e feto anencefálico – são suficientes. Mas a agenda politicamente correta insiste em ampliá-lo.
O deputado Jean Wyllys, que simboliza uma ala do politicamente correto, acha que, em questões assim, o povo não deve ser consultado, pois seguramente “votaria errado”. Ou seja, sente-se tutor da população em questões comportamentais.
Há uma determinação, de índole positivista, de impor às massas ignaras um novo país, moldado por valores que não compartilha e que não é chamado a debater.
A chave dessa divisão está no sistema educativo. Há décadas – e isso remonta ao tempo do regime militar -, a agenda politicamente correta, que contesta valores da formação cristã tradicional, que moldou o pensamento da população brasileira desde a colonização, vem sendo imposta nos colégios e universidades, sobretudo no meio urbano. Há mais de uma geração já submetida a esse software educacional, que prepara o país para sua total esquerdização, por meio de uma revolução cultural no melhor estilo gramsciano. E isso gerou dois brasis.
A própria Igreja Católica submeteu-se a essa polarização. Em 64, posicionou-se contra a esquerda; hoje, a apoia, via CNBB. Idem a OAB, hoje transformada em célula do PT. O fenômeno, complexo, é, no entanto, tratado de forma simplista.
O presidente do PT, Rui Falcão, adverte contra uma “conspiração conservadora”, que estaria promovendo “o renascimento da direita”, como se por trás da voz das ruas, que descrê dos partidos e da própria política, estivesse, como proclamou o sábio Sibá Machado, líder do governo na Câmara, “o braço da CIA e do imperialismo”. A realidade é outra: o PT aparelhou a sociedade civil organizada, mas não o Brasil profundo.
Aparelhar 200 milhões e varrer os valores essenciais que moldaram a construção de uma nação de meio milênio, exige, se é que é possível, mais tempo e melhor conteúdo.
Xingar de “fascistas”, “reacionários” e “direitistas” os milhares de manifestantes que ocupam as ruas – e os milhões que se manifestam de casa -, e que rejeitam a imposição de uma agenda avessa a seus costumes, é inútil e ridículo.
O abismo entre os dois brasis é profundo e nenhum partido sequer diagnosticou o problema. A eventual queda do PT não o resolve, mas, ao menos, abre caminho para que uma interlocução se estabeleça. É preciso repensar o país real, em vez de insistir, como os positivistas que há 126 anos proclamaram a república, em conduzi-lo como um rebanho inepto a um projeto de paraíso que só existe na cabeça dos que o conceberam.